sexta-feira, 5 de setembro de 2008

As mais remotas raízes do Choro em CD


Apesar do descaso costumeiro do Brasil em relação à própria História, os 200 anos da chegada de D. João VI ao Rio de Janeiro - marco do desenvolvimento urbano da cidade - estão sendo bem lembrados.


Agora em 2008 são comemorados os 200 anos da chegada da Família Real Portuguesa ao Rio de Janeiro, e por toda a cidade a data está sendo lembrada com exposições, concertos e vários lançamentos em livro e disco que resgatam a história, a cultura e a sociedade da época. Quando transformou-se na capital do Reino Unido de Portugal e Algarves, o Rio viu-se diante de uma revolução que desencadeou o processo de urbanização da cidade, provocando uma radical mudança política, econômica, social e cultural, e fornecendo os ingredientes necessários ao surgimento de uma música popular brasileira, e ali um pouco mais adiante, do Choro.


Um desses lançamentos que vem na onda dos 200 anos do período joanino é a série de CDs intitulada "A música na corte de D. João VI" composta por quatro álbuns: "Te deum & Requiem", "Modinhas cariocas", "O sacro e o profano", e "Missa de Nossa Senhora da Conceição". Saiu pela Biscoito Fino, com direção geral de Edino Krieger. O objetivo da série é desenhar um panorama da música que a corte portuguesa encontrou ao aportar por aqui nos idos de 1808; para isso, todas as gravações foram feitas a partir de partituras e outros documentos da época.
Dos quatro discos lançados, um é particularmente especial para quem deseja conhecer a fundo a história do surgimento do Choro, e por extensão, da música popular brasileira: trata-se do "Modinhas cariocas", que traz Modinhas e Lundus de autoria de Candido Ignacio da Silva, Gabriel Fernandes da Trindade e Joaquim Manoel Gago da Camera, todos compositores brasileiros em atividade no primeiro quarto do século XIX. As 21 faixas do CD são magistralmente executadas por um quinteto formado por Luciana Costa e Silva (meio soprano), Marcelo Coutinho (barítono), Paulo da Mata (flauta), Marcus Ferrer (viola caipira) e Marcelo Fagerlande (cravo e direção musical). As gravações foram feitas ao vivo no Salão Leopoldo Miguez da Escola de Música da UFRJ, em dezembro de 2007.

O encarte, muito bem elaborado, traz informações detalhadas sobre as faixas e um pequeno texto de Marcelo Fagerlange onde fica clara a intenção e o esforço feito afim de interpretar as músicas de maneira fiel ao período em que foram compostas, inclusive procurando reproduzir o timbre dos instrumentos do passado:
Reunimos em nosso CD a viola de arame [o mesmo que viola caipira] e o cravo - amplamente citados na época para o acompanhamento de modinhas - além da flauta, instrumento bastante encontrado na iconografia do período. (...) A utilização tardia do cravo no Brasil é documentada em diversas fontes, especialmente para acompanhar modinhas.(...) Em nossa gravação pode ser ouvido um instrumento de um teclado, cópia de um modelo italiano, semelhante aos instrumentos portugueses possivelmente tocados no Brasil.(...) Usamos em nossa interpretação de um recurso muito próprio das modinhas, a ornamentação.(...) Procuramos também resgatar uma prática da época, a das variações.(...)
Todo esse empenho valeu a pena, pois ao ouvir o disco me senti transportado através do tempo para o Rio das primeiras décadas do século XIX. Um ótimo álbum, e ainda mais interessante para aqueles que conhecem ao menos um pouco de Choro; vários elementos típicos da linguagem já aparecem ali, naquelas bicentenárias modinhas e lundus: os diálogos contrapostísticos entre os instrumentos, o fraseado, ora brejeiro e cheio de leveza, ora dolente e sentimental, os acompanhamentos já bastante similares às levadas utilizadas atualmente por cavaquinho e violão, e como bem disse o diretor musical Marcelo Fargerlange, também estão ali a variação e a ornamentação dos motivos melódicos, tão comuns ao Choro e tão disseminados pelo gênio de grandes intérpretes como Jacob do Bandolim e Altamiro Carrilho. Impossível ouvir e não associar de imediato às polcas de Joaquim Callado, aos maxixes de Chiquinha Gonzaga, aos Schottishes de Anacleto de Medeiros ou aos tangos de Ernesto Nazareth; ou até mesmo representantes de fases mais amadurecidas da linguagem, como João Pernambuco e Zequinha de Abreu.
Os comentários de flauta no lundu "Graças aos ceos" (na grafia da época) composto por Gabriel Fernandes da Trindade, poderiam tranqüilamente ter sido feitos por Pixinguinha, tamanha é a familiaridade entre os gêneros.

E ainda tem gente que acha que o Choro teve influência foi do Jazz...

Modinha e Lundu

Gêneros musicais bastantes populares no Brasil durante o século XIX, a Modinha e o Lundu são influência marcante e decisiva na formação do Choro. São gêneros bastante semelhantes, sendo que a Modinha é luso-brasileira e
de caráter romântico e sentimental, com músicas mais arrastadas e chorosas; já o Lundu é afro-brasileiro, e a temática é mais maliciosa, por vezes satírica, com melodias mais ligeiras e alegres.
A coexistência e afinidade dos dois pode ser confirmada pelo fato de que os compositores de Lundu também compunham Modinhas, e vice-versa: é o caso de Domingos Caldas Barbosa e Xisto Bahia, nomes de destacados de suas épocas.

Sobre o disco








A música na corte de D. João VI - Modinhas Cariocas

Luciana Costa e Silva - meio-soprano
Marcelo Coutinho - barítono
Paulo da Mata - flauta
Marcus Ferrer - viola caipira

Marcelo Fagerlande - cravo e direção musical

Ano: 2008
Gravadora: Biscoito Fino

Faixas:

1. Lá no Largo da Sé (Candido I. da Silva)
2. Batendo linda plumagem (Gabriel F. de Trindade)
3. Se queres saber a causa (Joaquim M. G. da Camera)
4. Estas lágrimas
(Joaquim M. G. da Camera)
5. Ouvi montes (Joaquim M. G. da Camera)
6. Desde o dia em que eu nasci (Joaquim M. G. da Camera)
7. Vem cá minha companheira (Joaquim M. G. da Camera)
8. Nestes bosques (Joaquim M. G. da Camera)
9. Si te adoro (anônimo)
10. Graças aos ceos
(Gabriel F. de Trindade)
11. Quando não posso avistar te (Gabriel F. de Trindade)
12. Triste cousa (Joaquim M. G. da Camera)
13. Foi o momento de ver-te (Joaquim M. G. da Camera)
14. Hum só tormento d'amor (Candido I. da Silva)
15. Erva mimoza do campo (Gabriel F. de Trindade)
16. Adorei hum'alma impura (Gabriel F. de Trindade)
17. A hora que não vejo (Candido I. da Silva)
18. Roxa saudade (Joaquim M. G. da Camera)
19. Quando as glorias que gosei (Candido I. da Silva)
20. Busco a campina serena (Candido I. da Silva)
21. Porque me dises chorando (Joaquim M. G. da Camera)

Cotação Quintal do Choro: ótimo

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